Na história, Adi vê sua vida virada de cabeça para baixo quando dois garotos o espancam na rua e seus pais buscam não só encontrar os autores do crime, mas o seu motivo. Nesse ponto, o roteiro do romeno Emanuel Parvu é esperto porque logo se descobre os responsáveis, mas a vítima, de repente, vira o vilão.
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As autoridades do pequeno vilarejo, inclusive seus próprios pais, sofrem muito mais com a descoberta da sexualidade do garoto do que com o crime. Em dado momento, o policial sugere que a queixa seja retirada para que o assunto não se espalhe.
O filme se engasga porque não encontra nesse conflito nada que o chafurde ao mostrar tudo sempre de forma direta, como se construísse uma crueldade chocante ao tornar o garoto apenas um saco de pancadas, sem reação ou qualquer subjetividade que o torne mais real.
O personagem do padre como representante da intolerância mira na ironia, mas o faz de forma rasa, assim como os pais interpretados por Laura Vasiliu e Bogdan Dumitrache que nunca convencem nos seus extremos.
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Da Zâmbia, “Tornando-se uma Galinha-d'Angola” mostra violências esquecidas 21d16
Como num poema sem rimas, o segundo filme do dia se encaixou pelos vazios. Dirigido pela zambiana Rungano Nyoni, “On Becoming a Guinea Fowl” – “Tornando-se uma Galinha-d'Angola”, em tradução livre –, é um grande contraponto no mesmo ponto de partida: a violência que está escondida dentro da família até que se coloque à prova.
O filme começa quando Shula (Susan Chardy) encontra seu tio morto, estirado na estrada, sem qualquer explicação. Ele simplesmente está lá. Quando ela chega perto do corpo, a imagem salta e vemos Shula em sua versão criança, mas na mesma rua, vendo o mesmo corpo. Naquele momento ainda não entendemos aquela imagem completamente, mas ela aos poucos vai ganhando significado.
A partir dessa morte inesperada, que faz com que sua extensa família tenha que se reunir para o funeral, Shula se vê refém da ficção da sua memória para tentar digerir sua indiferença em relação à morte daquele homem.
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“Você não contou para o papai">Diante dessa mágoa nunca encarada, a diretora nos hipnotiza ao criar seu próprio fluxo de delírio e tensão para ar o trauma, às vezes áspero e confuso, mas sempre interessado em fugir do que é óbvio.
Não há só discurso na tela de Rungano, como o romeno acreditava se bastar, mas há também imagens que são em si sentimentos – como a cena em que o dormitório surge alagado, as tias que dormem escondidas numa piscina vazia e a máscara de festa que ironiza o luto.
Esse confronto até nos lembra seu longa anterior “Eu Não Sou uma Bruxa”, mas aqui ela se desafia numa perspectiva de planos mais fechados e locações noturnas.
Por mais que o choque de filmes tão diferentes possa soar estranho, chego ao fim do dia satisfeito com o primeiro o porque Cannes, com programação de pelo menos 70 sessões por dia, faz de tudo para que você se surpreenda – seja positiva ou negativamente.
Para além de cada grande planeta de enorme gravidade, como os badalados da edição até agora “Megalopolis”, de Francis Ford Coppola, e “Furiosa”, de George Miller, há os que nos pegam pelo pescoço fazendo menos barulho. O grito final de “Tornando-se uma Galinha d’angola”, por exemplo, não vai sumir de mim tão cedo.
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