Eventos extremos se tornam 2,5 vezes mais prováveis com mudanças climáticas
Segundo estudo, 61% do aumento nas inundações do rio Joruá, está relacionada a ação humana. O intervalo natural entre os episódios que antes era de 107 caiu para 42 anos
Eventos extremos como a cheia do Rio Juruá, registrada em 2021, têm hoje uma probabilidade 2,5 vezes maior de ocorrer devido às mudanças climáticas provocadas por ações humanas. É o que aponta um estudo divulgado nesta quinta-feira, 29. A pesquisa constatou que 61% do aumento nas inundações está diretamente relacionado à influência humana, o que reduziu o intervalo natural entre episódios de 107 para apenas 42 anos.
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O Rio Juruá, que atravessa os estados do Acre e Amazonas, registrou uma precipitação histórica entre dezembro de 2020 e março de 2021, com volume 48% acima do esperado para o período. O resultado foi a inundação de 25 km² de área urbana e 1.150 km² de pastagens, contaminando solos agrícolas e dificultando o deslocamento de milhares de moradores.
Segundo o estudo, os impactos diretos sobre vidas humanas foram significativos: somando dados do Acre e Amazonas, estima-se que mais de 71 mil pessoas tenham sido diretamente afetadas (com perda de casas, plantações e até entes queridos) e outras 123 mil indiretamente atingidas (por isolamento, falta de serviços e assistência).
Um dos casos que chama atenção é o da cidade de Jordão, no Acre, em que o número de afetados (9.445) superou a população oficial registrada (cerca de 6.577 habitantes em 2021), o que pode indicar um sub-registro populacional ou a presença de muitas pessoas temporariamente na região. Em Itamarati, no Amazonas, quase metade da população de 7.777 habitantes foi atingida.
Houve também mortes confirmadas em cidades como Cruzeiro do Sul, Tarauacá e Atalaia do Norte. No total, a bacia do Rio Juruá abrange 22 municípios brasileiros, distribuídos entre os dois estados.
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Os prejuízos econômicos também foram expressivos, alcançando a marca de 16,5 milhões de dólares. A maior parte — quase 9 milhões — corresponde a perdas privadas, especialmente na agricultura e pecuária, que sustentam inúmeras famílias na região. Já o setor público como um todo, acumulou prejuízos superiores a 7 milhões de dólares.
A doutora em sensoriamento remoto e coautora do estudo, Renata Pacheco Quevedo, destaca que os números ainda subestimam o real impacto da tragédia. “Ao considerar a realidade brasileira, especialmente de uma região de extrema relevância estratégica e ambiental como a Amazônia, o estudo evidenciou gargalos relacionados à coleta, padronização e integração dos dados sobre impactos”, explica.
Renata aponta que lacunas nos registros dificultam a mensuração de efeitos de longo prazo, como hospitalizações, transtornos mentais e perdas materiais indiretas. A coleta de dados feita às pressas, geralmente em até dez dias após o evento para solicitação de recursos, compromete a precisão das estimativas e omite realidades vividas por populações mais isoladas.
Ela explica que a metodologia utilizada no estudo baseou-se na comparação de dois cenários simulados por modelos climáticos: um com influência antrópica (humana) e outro apenas com variáveis naturais. A partir dos dados reais de precipitação extrema registrados no período, validados por satélites e modelos como o CHIRPS e o Radigen, os pesquisadores puderam calcular a mudança na frequência dos eventos extremos.
“A comparação mostra que a presença de gases de efeito estufa potencializou significativamente a chance de uma cheia como a de 2021 acontecer”, afirma.
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Outro ponto crítico destacado pela pesquisadora é a subnotificação das consequências sociais, especialmente as invisíveis, como os impactos à saúde mental. “Hoje temos dados mais precisos sobre doenças como leptospirose, mas seguimos negligenciando os efeitos psicológicos das catástrofes, que afetam essas populações a médio e longo prazo”, alerta.
Segundo ela, em situações de desastre, é comum que a necessidade por atendimento psicológico aumente, mas a falta de planejamento e de profissionais disponíveis torna essa resposta insuficiente.
A pesquisadora ressalta que o intervalo entre grandes eventos ou de 107 para 42 anos e deve continuar diminuindo, caso a emissão de gases de efeito estufa não seja controlada:
“Se atualizarmos esse estudo em breve, é provável que o intervalo se reduza ainda mais. A Amazônia, ao mesmo tempo que é estratégica para o clima global, também é altamente vulnerável, e já vivencia recordes sucessivos de cheias e secas extremas”, comenta.
Para os gestores públicos, Renata reforça que o principal aprendizado do estudo é a urgência de incorporar a mudança climática como eixo transversal nas políticas públicas:
“Não pode ser uma pauta de um partido, mas uma agenda nacional. O artigo fornece dados concretos e métricas para mostrar que a crise climática já é realidade. É hora de agir”, defende. Ela ainda aponta a COP 30 como uma oportunidade importante para consolidar esses debates em políticas de longo prazo.
Por fim, sublinha a necessidade de maior aproximação entre ciência e política. Segundo ela, muitas decisões sobre expansão urbana, licenciamento ambiental e exploração territorial ainda ocorrem sem embasamento técnico:
“O Brasil tem instituições e pesquisadores altamente capacitados. É essencial que políticas públicas sejam informadas por estudos científicos, considerando os riscos ambientais e sociais envolvidos. A ciência não é inimiga da economia — mas precisamos de uma economia que respeite os limites ambientais, ou o colapso será inevitável”, conclui.
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Metodologia
Para avaliar os impactos ambientais do evento, os pesquisadores utilizaram uma combinação de bases de dados oficiais, como o Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (SNIRH), o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e o sistema CHIRPS — que reúne dados de satélites e pluviômetros sobre a precipitação global. Já as informações sociais e econômicas foram obtidas no Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), plataforma do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil.
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